Durante muito tempo, o lactato foi visto apenas como um subproduto do metabolismo anaeróbico. Hoje sabemos que seu papel vai muito além disso: ele atua como substrato energético, participa do equilíbrio redox celular e ainda funciona como marcador clínico em diferentes condições. Seu metabolismo envolve um ciclo dinâmico de produção, transporte e consumo, interferindo tanto em processos fisiológicos quanto patológicos.
Mesmo em ambientes com oxigênio suficiente, como no cérebro e no músculo em repouso, a síntese de lactato continua acontecendo, reforçando sua relevância além da anaerobiose.
Conceito de lactato
O lactato é um metabólito originado da glicólise, sendo produzido a partir do piruvato pela ação da enzima lactato desidrogenase (LDH). Esse processo não depende exclusivamente da ausência de oxigênio, já que ocorre tanto em condições aeróbicas quanto anaeróbicas, servindo como regulador da oferta e da utilização de energia.
Produção e metabolismo do lactato
Formação do lactato
A conversão do piruvato em lactato pela LDH acontece principalmente quando a disponibilidade de oxigênio é insuficiente para sustentar a fosforilação oxidativa — como no exercício intenso ou na hipóxia. No entanto, mesmo em condições fisiológicas normais, tecidos como cérebro, músculo e hemácias continuam gerando lactato de forma constante.
Lactato e equilíbrio redox celular
Esse processo está diretamente associado ao balanço entre NADH e NAD⁺. A regeneração de NAD⁺ garante a continuidade da glicólise e a produção de ATP, permitindo que a célula mantenha atividade metabólica mesmo em situações de baixa oxigenação.
Transporte tecidual do lactato
O lactato produzido em um tecido não permanece apenas no local de origem. Ele é transportado pela circulação, mediado pelas proteínas MCTs (transportadoras de monocarboxilatos), chegando a tecidos oxidativos como coração e músculo esquelético, que o reaproveitam como fonte de energia, reconvertendo-o em piruvato para posterior oxidação no ciclo de Krebs.
Ciclo de Cori e gliconeogênese hepática
No fígado, o lactato pode ser convertido novamente em glicose por meio do ciclo de Cori, processo fundamental durante o exercício intenso e no jejum prolongado. Dessa forma, contribui para manter a glicemia estável e evitar quedas críticas nos níveis de energia.
Funções do lactato
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Fonte energética: utilizado por coração, músculo e cérebro, o lactato funciona como combustível alternativo, sendo convertido novamente em piruvato e metabolizado no ciclo de Krebs.
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Marcador clínico: suas concentrações no sangue refletem o estado metabólico e a perfusão tecidual. Situações de hipoperfusão e choque elevam os níveis de lactato, auxiliando na avaliação clínica e no monitoramento de terapias.
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Intermediário metabólico: no ciclo de Cori, atua como elo entre músculo e fígado, sendo convertido em glicose e garantindo a manutenção da homeostase energética.
Situações que modificam os níveis de lactato
Condições de aumento
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Exercício físico intenso: predomínio da glicólise anaeróbica, elevando a produção de lactato além da capacidade de remoção.
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Hipóxia e hipoperfusão: como no choque séptico, insuficiência cardíaca ou respiratória, em que a oxidação mitocondrial fica comprometida.
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Sepse e infecções graves: pela disfunção mitocondrial e redução da depuração hepática.
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Doenças hepáticas e metabólicas: falha na conversão hepática de lactato em glicose.
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Intoxicações e carências nutricionais: etanol, metformina, cianeto, salicilatos e deficiência de tiamina comprometem o metabolismo do piruvato.
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Doenças musculares e câncer: miopatias como a de McArdle e tumores (efeito Warburg) aumentam a produção de lactato.
Condições de redução
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Reposição volêmica: melhora da perfusão e remoção do lactato pelos rins e fígado.
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Terapias hemodinâmicas: inotrópicos (ex.: dobutamina) e vasodilatadores favorecem oxigenação e consumo mitocondrial.
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Recuperação pós-exercício: a remoção do lactato supera sua produção, sendo reutilizado como energia ou convertido em glicose pelo fígado.
Referências
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TOFFALETTI, John G. Blood Lactate: Biochemistry, Laboratory Methods, and Clinical Interpretation. Critical Reviews in Clinical Laboratory Sciences, v. 28, n. 4, p. 253-266, 1991.
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HALL, Mederic M. et al. Lactate: Friend or Foe. PM&R Journal, v. 8, n. S8-S15, 2016.
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RABINOWITZ, Joshua D.; ENERBÄCK, Sven. Lactate: The Ugly Duckling of Energy Metabolism. Nature Metabolism, v. 2, n. 7, p. 566-571, 2020.