A testosterona, hormônio frequentemente associado ao corpo masculino, também desempenha papéis fundamentais na saúde da mulher. Seu efeito vai além da esfera sexual, abrangendo os sistemas muscular, ósseo e neurocognitivo. Apesar de seu potencial terapêutico, a reposição em mulheres ainda é limitada e cercada de debates. A seguir, apresentamos os principais pontos clínicos sobre a testosterona no organismo feminino.
Observação clínica: O diagnóstico do déficit androgênico deve priorizar a avaliação dos sintomas, pois os níveis sanguíneos nem sempre refletem a ação hormonal nos tecidos.
Conceito
A testosterona é um hormônio androgênico produzido naturalmente nos ovários e nas glândulas adrenais femininas. Embora seja tradicionalmente associada aos homens, nas mulheres ela contribui para o desejo sexual, manutenção da densidade óssea, preservação da massa muscular e regulação do humor.
Durante a fase reprodutiva, os níveis de testosterona são significativamente superiores aos do estradiol, e mesmo após a menopausa os ovários continuam produzindo andrógenos, embora em menores quantidades. No sangue, a testosterona circula principalmente ligada a proteínas plasmáticas, como a SHBG (globulina ligadora de hormônios sexuais), sendo a fração livre a responsável pelos efeitos biológicos nos tecidos.
Função da testosterona na mulher
A testosterona exerce múltiplas funções no corpo feminino:
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Saúde sexual: regula o desejo sexual, influencia a resposta ao estímulo erótico, aumenta a motivação e a sensibilidade ao prazer.
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Sistema musculoesquelético: mantém massa muscular, força física e densidade óssea, sendo crucial na pós-menopausa.
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Sistema nervoso central: modula humor, cognição, energia, bem-estar e memória verbal.
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Ação local: contribui para a integridade da pele e mucosas, incluindo a mucosa vaginal.
Grande parte desses efeitos ocorre devido à conversão intracelular da testosterona em hormônios ativos, como estradiol e di-hidrotestosterona (DHT), demonstrando sua complexa atividade metabólica.
Causas de deficiência androgênica em mulheres
A deficiência de testosterona pode resultar de fatores fisiológicos, doenças ou intervenções médicas:
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Envelhecimento natural: redução gradual da produção ovariana e adrenal, mesmo antes da menopausa.
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Menopausa cirúrgica: remoção dos ovários causa queda abrupta dos níveis de testosterona.
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Distúrbios endócrinos: insuficiência adrenal, hipopituitarismo ou amenorreia hipotalâmica comprometem a síntese de andrógenos.
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Uso de medicamentos: corticoides prolongados ou anticoncepcionais hormonais que aumentam a SHBG podem reduzir a testosterona livre.
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Doenças crônicas: HIV, hepatopatias ou anorexia nervosa interferem na produção e ação dos andrógenos.
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Iatrogênicas: radioterapia pélvica ou quimioterapia podem afetar a função ovariana.
A avaliação deve ser individualizada, considerando sintomas, contexto de saúde e níveis séricos, que nem sempre refletem a atividade hormonal real.
Indicações clínicas para uso de testosterona
Atualmente, a única indicação com evidência sólida para a terapia com testosterona em mulheres é o transtorno do desejo sexual hipoativo (TDSH), especialmente na pós-menopausa, quando há queixa persistente de perda de interesse sexual com sofrimento pessoal.
Antes de iniciar o tratamento:
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Avaliar causas secundárias, como fatores psicológicos, uso de medicamentos ou outros distúrbios hormonais.
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Adotar abordagem multidimensional, incluindo avaliação biopsicossocial e acompanhamento com equipe de saúde mental ou terapia sexual.
Importante: não se recomenda testosterona para melhorar energia, composição corporal, saúde óssea, cognição ou prevenção cardiovascular, devido à falta de evidência de eficácia e segurança. O tratamento deve ser criterioso, com metas claras e monitoramento contínuo.
Diagnóstico do déficit androgênico
O diagnóstico deve combinar avaliação clínica e exclusão de outras causas:
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Sintoma principal: redução persistente do desejo sexual com sofrimento subjetivo.
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Sintomas inespecíficos: fadiga, baixa energia, alterações de humor, que podem ter múltiplas origens.
Exames laboratoriais:
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Dosagem de testosterona total preferencialmente pela manhã, na fase folicular, usando métodos de alta sensibilidade (cromatografia líquida com espectrometria de massa).
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Interpretação cuidadosa, pois não há ponto de corte universalmente validado.
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Avaliação de SHBG útil em mulheres que usam estrógenos orais.
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Testes de testosterona livre ou índice androgênico livre não são recomendados rotineiramente.
O foco permanece na avaliação clínica criteriosa, enfatizando a importância do julgamento individualizado.
Formas de reposição disponíveis e posologia
A reposição em mulheres utiliza principalmente preparações masculinas ajustadas para doses menores, exceto na Austrália, onde existe formulação transdérmica específica para mulheres. O uso é off-label em outros países e exige atenção a dose, pureza e monitoramento.
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Via preferencial: transdérmica (gel ou creme), por permitir absorção gradual e menor impacto metabólico.
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Dose: aproximadamente 1/10 da dose masculina (cerca de 5 mg/dia), ajustada conforme resposta clínica e níveis hormonais.
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Outras formas: orais não são recomendadas; implantes subcutâneos e formulações manipuladas devem ser usados somente em casos excepcionais e com rigor de qualidade.
Orientações importantes:
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Aplicar em pele limpa e seca (abdome ou coxa).
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Evitar contato com outras pessoas por algumas horas.
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Lavar as mãos após uso.
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Revisar posologia a cada 3 a 6 semanas, ajustando conforme sintomas e sinais de excesso androgênico (acne, hirsutismo).
Referências bibliográficas
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